A importância do Não em nossas vidas - Psicanalista Sandro Cavallote
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A importância do Não em nossas vidas

Eu sou um rato de Netflix, assim como sempre fui um rato de locadora. Fuço, procuro, tento fazer o possível para o algoritmo entender que eu tenho interesse em coisas diversas, em coisas que nem todo mundo tem interesse. Dedinho para cima, dedinho para baixo, o Netflix não parece entender que gosto muito de documentários e séries com temas diferentes, pois vira e mexe encontro algumas produções interessantíssimas, mas que nunca me foram oferecidas. O Netflix insiste em me mandar aquele filme de ação da semana, mesmo que eu não tenha terminado a maior parte dos que comecei a ver. Acho que, com o tempo, você começa a querer otimizar a qualidade do que vai ver e, mesmo numa pandemia, falar alguns nãos para o que é oferecido descaradamente para você é uma boa forma de rebeldia.

O não é libertador. Eu só descobri isso muito tarde, na verdade, no último ano, em terapia. Não sei dizer quando começou, mas ao constatar o fato, vários momentos da minha vida em que eu deveria ter dito um simples não surgiram em minha mente. Fiquei estarrecido, além de um pouco melancólico. Afinal, em qual momento da minha vida eu comecei a esquecer uma das propostas tão prazerosas do não: a de não fazer algo que realmente não queira fazer?

Eu tirei o não do meu contexto emocional há muito tempo, e nem tinha me dado conta disso. Estar sempre disponível, fazer tudo o que for possível, aquela hora extra não remunerada, perder o meu feriado para que o chefe pudesse curtir o seu, realizar aquele retrabalho porque as informações não vieram completas (anos e anos de agência de publicidade fazem isso com você). Esses são alguns poucos exemplos só para ficar no âmbito profissional. No que diz respeito ao emocional e psicológico a coisa é bem mais densa e refletirá por anos e anos em toda a sua vida. Aquele não não dito pode transformar-se em dor, em mágoa, em um machucado físico. Recalcamentos incontáveis de nãos não ditos. E como a não verbalização destes nãos pode ter um reflexo em praticamente tudo o que vem durante nosso desenvolvimento.

Na série holandesa Toon, da Netflix, diversos desses nãos surgiram em tela enquanto eu assistia. Vários momentos da minha vida, vários momentos de sim pregados por terceiros e simplesmente aceitos pelo personagem principal. Pois na vida do músico Toon não há nãos, só há o sim terceirizado. Nessa devassidão pseudo positiva de sins, uma festa de aniversário transformou Toon em um web fenômeno de um dia para outro, literalmente. Toon não queria isso, Toon não gostou da música que fez, Toon não se divertiu com o sucesso, Toon não disse não para aquele monte de gente que se apossou da sua vida. Toon não deve ter dito um simples não durante toda a primeira temporada.

Não que a série seja memorável, mas a sequência infindável de momentos e eventos que precisavam de um não me incomodaram a tal ponto de eu criar uma resistência em mim pelo término da série. Não tenho problema em abandonar algo que não goste, mas havia algo a mais. Eu queria ver se Toon diria um não na segunda temporada. E, mais uma vez, decepção. No momento final de ambas as temporadas, onde algo poderia ser dito (um simples não, talvez) virou uma fuga.

E foi aí que eu percebi como a ficção de Toon é a realidade de muitos nós.

Parte dessa situação é o receio do confronto, que é algo que eu demorei para entender a importância também, o quanto confrontar algo que não o agrada, que te destitui de seu lugar é engrandecedor do ponto de vista de autoconhecimento. O uso do não é parte desse processo de crescimento, de evolução. E, por diversos motivos, muitas vezes deixamos de enxergar sua importância no dia a dia, seja pelo sufoco imposto pela nossa sociedade de consumo, seja porque fomos condicionados e simplificados ao ponto de evitar seu uso.

Quantos nãos deixam de ser ditos e quantas fugas são realizadas para afastar-se dessa responsabilidade? O quanto você recalca esses afetos achando que pode lidar com eles a médio ou longo prazo? O quanto essa falta de verbalização de sins em sua vida pode estar deixando você sentindo-se mal?

O uso do não em nossas vidas deve ser uma prática diária. Não estou falando daqueles que só dizem não (para estes, em breve, um texto sobre sins) mas, pense:

– Sabe aquele sentimento que você considera ruim? Ele poderia ser resolvido com um grande e gordo não?



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