[Série] “O império da dor”
Somos um país com uma grande incidência da cultura americana. Isso se dá por vários fatores, com destaque para a economia e política. E quando falamos de cultura, precisamos nos localizar na visão freudiana expandida do conceito. Mais uma vez, “palavras além das palavras”: Freud entendia que sociedade e cultura são uma mesma coisa, que se desenvolvem num esquema simbiótico nas relações que desenvolvemos com as nossas pulsões, muitas vezes, causando um “mal-estar”.
A composição social da psicanálise sempre se dará no sentido de insatisfação. Não há como dissociar disso.
E essa expansão conceitual da cultura nos atravessa de várias formas: no entretenimento, nos quadrinhos, na literatura, em nossas percepções de mundo. Estranhamos material cultural de outros países (inclusive, de nosso próprio, em uma sensação, de um certo estrangeirismo) porque nos habituamos à estrutura de linguagem americana. A saúde mental, na perspectiva farmacológica, também tem essa convergência. A indústria americana é um negócio trilionário e que precisa ser retroalimentada de alguma maneira. Portanto cabe a nós, como psicanalistas, entendermos o fenômeno em essência e construir pontes seguras de acolhimento para nossos analisantes. Mas não é simples: somos um mercado muito importante para os EUA.
Dito isso, a nova produção da Netflix dá uma esmiuçada nesse conceito. Historicamente, se desenvolve por mostrar o que é chamado de “máfia dos opioides”, e como os conceitos de medicalização e pílulas foram constituídos pela necessidade de respostas rápidas para o tratamento de angústias, aliada à ânsia monetária e de poder no processo.
E sua droga de maior sucesso, o OxyContin, ainda está por aí. Em variações, mas ainda está.
Existe uma responsabilidade inerente na formação psicanalítica que nos coloca em uma busca de conhecimento constante. Entender o fenômeno da necessidade de medicação é parte desse processo. Conhecer as psicopatologias, entender a história e as motivações que se seguem para a manutenção da saúde mental é elementar. Mas esta é, também, mais uma dinâmica da psicanálise. O conceito de cultura precisa ser ampliado por cada um de nós, por mais indigesto que possa ser.